quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Belo Monte, o Xingu e Narradores de Javé - a cultura como patrimônio

Todas as discussões acerca da usina de Belo Monte me remetem ao filme Narradores de Javé. O que já serviu de roteiro para um filme excelente como este hoje é fato concreto, com direito a protagonistas e tudo mais. 

O processo civilizatório brasileiro impediu o entendimento e a visualização de muitos grupos culturais. A história contada e reforçada nega as comunidades culturais observadas no filme Narradores de Javé.
Toda história é contada a partir de um ponto de vista. No filme Narradores de Javé vemos a história oral como elemento essencial para caracterizar, “cientificamente”, a história do povoado.
A cidade em questão apresenta seus valores, normas e interesses da coletividade (mas isso não exclui a presença de conflitos), pois está prestes a ser inundada devido à construção de uma hidrelétrica. Este fato nos chama a atenção por alguns motivos.
O primeiro trata-se da idéia de progresso e civilização. No processo civilizatório ocorre uma interação e, sem dúvida, um choque cultural entre diversos grupos, no qual se avaliam os traços culturais que estão se envolvendo e o que está sendo deixado para trás.
Javé está esquecida, e para reverter a situação os moradores tentam escrever a história do município. É neste momento que nos deparamos com o esquecimento de grupos culturais, não somente em Javé, mas em todo o país.
Manifestantes em protesto contra Belo Monte
É interessante observar que a história de Javé é praticamente contada de maneira semelhante, mas os olhares são diferentes. O papel e o que cada personagem representou no passado são levados em conta, a exemplo do grande líder do exército, visto como nobre, símbolo de honra ou até covardia. A presença da mulher nos primórdios da formação da cidade também é vista sob ópticas diversas (heroína, louca ou apenas mais uma).
Apesar de algumas observações serem peculiares, podemos notar que, na tentativa de reconstituir a história, o alfabetizado Biá recorre à comunidade local. No exemplo supramencionado já é possível fazer uma reflexão acerca dos grupos que inicialmente compõem o município de Javé, e não há grande convicção quanto à forma de organização cultural da sociedade.
A idéia de esquecimento de outros grupos atinge o ápice no momento em que Biá se afasta da região central e parte para uma área mais periférica e isolada. Lá ele encontra uma tribo africana, que, através de um tradutor, conta a história de Javé (de seu guerreiro, da mulher e da população em geral) de uma forma extremamente diferente, sob outras circunstâncias. Há todo um ritual para que a história seja contada. Nesta ocasião percebe-se como a civilização, por menor que seja sua influência, carrega um conjunto de elementos e afasta outros, que ficam omitidos no processo histórico.
Estes povos que pouco alteram ou quase não entram na história (pelo menos na que se tem conhecimento, naquelas que são transmitidas nos livros didáticos de História) são dotados de características importantes para compreendê-los, entre elas o fato de sua cultura não possuir resquícios ou pouco estar afetada pelo domínio de outra. Aqui, entendemos cultura como um patrimônio moral e intelectual constituído por linguagens, símbolos, conceitos, comportamentos e interação social. A cultura, portanto, passa a representar um nível particular de realidade social.
Com isso, faz-se necessário uma aproximação entre desenvolvimento/formação econômico-social e civilização. O filme nos mostra o processo civilizatório de forma geral, como uma sequência evolutiva causada pelos efeitos socioculturais e mudanças técnicas, mas também exibe um processo individual e próprio dos habitantes da região.
Fica claro, portanto, que o processo civilizatório faz com que não seja fácil identificar os diversos grupos culturais. A própria cidade de Javé é um grupo que caiu no esquecimento em função dos fenômenos civilizatórios e progressivos, e é constituída por outros subgrupos que não estão na memória e que não tiveram importância para mudar o rumo da civilização ou impedir o avanço que causou a inundação e o fim daquele lugar.
Realmente fica difícil não compararmos os habitantes de Javé com o povo Xingu. Ambos retratam os obstáculos de uma sociedade disposta a fazer tudo em nome do progresso. Progresso para quem?

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A respeito da degradação do homem de ciência

Estava lendo alguns trechos do livro do Albert Einstein, Como vejo o mundo, e me encantei pelo tópico "A respeito da degradação do homem de ciência". Seria muito importante se algumas pessoas lessem isso. 

Qual a meta que deveríamos escolher para nossos esforços? Será o conhecimento da verdade ou, em termos mais modestos, a compreensão do mundo experimental, graças ao pensamento lógico coerente e construtivo? Será a subordinação de nosso conhecimento racional a qualquer outro fim, digamos, por exemplo, “prático”? O pensamento por si só não pode resolver este problema. Em compensação, a vontade determina sua influência sobre nosso pensamento e nossa reflexão, com a condição evidentemente de que esteja possuída por inabalável convicção. Vou lhes fazer uma confidência muito pessoal: o esforço pelo conhecimento representa uma dessas metas independentes, sem as quais, para mim, não existe uma afirmação consciente da vida para o homem que declara pensar.
O esforço para o conhecimento, por sua própria natureza, nos impele ao mesmo tempo para a compreensão da extrema variedade da experiência e para o domínio da simplicidade econômica das hipóteses fundamentais. O acordo final desses objetivos, no primeiro momento de nossas pesquisas, revela um ato de fé. Sem esta fé, a convicção do valor independente do conhecimento não existiria, coerente e indestrutível.
Esta atitude profundamente religiosa do homem de ciência em face da verdade repercute em toda a sua personalidade. Com efeito, em dois setores os resultados da experiência e as leis do pensamento se dirigem por si mesmos. Portanto o pesquisador, em princípio, não se fundamenta em nenhuma autoridade cujas decisões ou comunicações poderiam pretender á verdade. Daí o seguinte violento paradoxo: Um homem entrega sua energia inteira a experiências objetivas e se transforma, quando encarado em sua função social, em um individualista extremo que, pelo menos teoricamente, só tem confiança no próprio julgamento. Quase se poderia dizer que o individualismo intelectual e a pesquisa científica nascem juntos historicamente e depois nunca mais se separam.
Ora, assim apresentado, que é o homem de ciência a não ser simples abstração, invisível no mundo real, mas comparável ao homo oeconomicus da economia clássica? Ora, na realidade, a ciência concreta, a de nosso cotidiano, jamais teria sido criada e mantida viva, se este homem de ciência não houvesse aparecido, pelo menos em grandes linhas, em grande número de indivíduos e durante longos séculos.
É claro, não considero automaticamente um homem de ciência aquele que sabe manejar instrumentos e métodos julgados científicos. Penso somente naqueles cujo espírito se revela verdadeiramente científico.
No momento atual, em que situação no corpo social da humanidade se encontra o homem de ciência? Em certa medida, pode felicitar-se de que o trabalho de seus contemporâneos tenha radicalmente modificado, ainda que de modo muito indireto, a vida econômica por ter eliminado quase inteiramente o trabalho muscular. Mas sente-se também desanimado, já que os resultados de suas pesquisas provocaram terrível ameaça para a humanidade. Porque esses resultados foram apropriados pelos representantes do poder político, estes homens moralmente cegos. Percebe também a terrível evidência da fenomenal concentração econômica engendrada pelos métodos técnicos provindos de suas pesquisas. Descobre então que o poder político, criado sobre essas bases, pertence a ínfimas minorias que governam à vontade, e completamente, uma multidão anônima, cada vez mais privada de qualquer reação. Mais terrível ainda se lhe impõe outra evidência. A concentração do poder político e econômico nas mãos de tão poucas pessoas não acarreta somente a dependência material exterior do homem de ciência, ameaça ao mesmo tempo sua existência profunda. De fato, pelo aperfeiçoamento de técnicas requintadas para dirigir uma pressão intelectual e moral, ela impede o aparecimento de novas gerações de seres humanos de valor, mas independentes.
Hoje, o homem de ciência se vê verdadeiramente diante de um destino trágico. Quer e deseja a verdade e a profunda independência. Mas, por estes esforços quase sobre-humanos, produziu exatamente os meios que o reduzem exteriormente à escravidão e que irão aniquilá-lo em seu íntimo. Deveria autorizar aos representantes do poder político que lhe ponham uma mordaça. E como soldado, vê-se obrigado a sacrificar a vida de outrem e a própria, e está convencido de que este sacrifício é um absurdo. Com toda a inteligência desejável, compreende que, num clima histórico bem condicionado, os Estados fundados sobre a idéia de Nação encarnam o poder econômico e político e, por conseguinte, também o poder militar, e que todo este sistema conduz inexoravelmente ao aniquilamento universal. Sabe que, com os atuais métodos de poder terrorista, somente a instauração de uma ordem jurídica supranacional pode ainda salvar a humanidade. Mas é tal a evolução, que suporta sua condenação à categoria de escravo como inevitável. Degrada-se tão profundamente que continua, a mandado, a aperfeiçoar os meios destinados à destruição de seus semelhantes.
Estará realmente o homem de ciência obrigado a suportar este pesadelo? Terá definitivamente passado o Tempo em que sua liberdade íntima, seu pensamento independente e suas pesquisas podiam iluminar e enriquecer a vida dos homens? Teria ele se esquecido de sua responsabilidade e sua dignidade, por ter seu esforço se exercido unicamente na atividade intelectual? Respondo: sim, pode-se aniquilar um homem interiormente livre e que vive segundo sua consciência, mas não se pode reduzi-lo ao estado de escravo ou de instrumento cego.
Se o cientista contemporâneo encontrar tempo e coragem para julgar a situação e sua responsabilidade, de modo pacífico e objetivo, e se agir em função deste exame, então as perspectivas de uma solução racional e satisfatória para a situação internacional de hoje, excessivamente perigosa, aparecerão profunda e radicalmente transformadas.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O caso da USP

Situação difícil esta que a USP enfrenta. Especialmente depois do ocorrido na madrugada de ontem.
Só para lembrarmos como começou, em maio deste ano houve um assalto na universidade que, infelizmente, gerou consequências mais drásticas. Após a morte do estudante, a USP criou um convênio com a polícia militar. No final de outubro (se não me engano), três estudantes foram detidos porque estavam portando maconha no campus. Desde então, alguns alunos, principalmente da FFLCH, ocuparam a reitoria e exigiram a saída da polícia na universidade. (Verdade seja dita também: alguns que se revoltaram com a polícia estavam muito mais preocupados em ter a liberdade de usarem suas drogas livremente.) Após a ocupação, os protestos desses estudantes aumentaram e tomou proporções maiores, com atos mais graves também.
Algumas críticas, no entanto, não caíram sobre a questão dos protestos, mas sobre quem estava protestando, isto é, a "cara" da manifestação. O estudante que trajava o moletom GAP e um óculos de sol tornou-se o símbolo da ocupação. Inclusive, até o Marcelo Tas se manifestou no seu blog (clique aqui e veja a postagem). Outra imagem-símbolo da manifestação foi a de um homem segurando um cartaz dizendo que tem tempo para ser "revolucionário" (como se esse movimento tivesse caráter revolucionário) porque é bancado pelo pai. Pior que é verdade. Quando se é bancado, sobre tempo pra tudo.


Eu gostaria de deixar registrada a minha opinião porque considero de suma importância discutir este fato dentro tanto da questão do exercício de participação quanto a questão da vigência do Estado de direito. A liberdade de pensamento, expressão e associção é garantida a todos, mas o que ocorreu na USP não foi uma forma inteligente de protesto e manifestação. Aos olhos de quem está do lado de fora, a ocupação na reitoria mostrou a contradição desses estudantes, depredando o patrimônio público, agredindo a imprensa e considerando-se presos políticos, já que para eles a presença da polícia é praticamente a retomada da ditadura.
Uma das coisas que mais me incomodou nesses estudantes foi o fato de muitos terem participado das ações usando máscaras ou camisas para cobrir o rosto. Defender os ideias mostrando a cara e assumir as consequencias como um legítimo cidadão passou longe de certos manifestantes.
Estes acontecimentos estão servindo para nos mostrar outras coisas também, que vão além dos problemas com a reitoria ou a presença da polícia no campus. Primeiro, a USP não é mais aquele modelo de instituição formadora de opinião. Educação é um problema estrutural, e a USP (bem como outras universidades conceituadas) não é uma bolha isolada que serve de exemplo para o resto. Ela também faz parte de um sistema educacional falido. O problema é que para esses "revolucinários" que têm tempo para tudo a tal da vida universitária é encarada como essa bolha. 
Além disso, como não vejo tais atos como uma forma inteligente de protetso, a imagem da luta por um ideal está corrompida, e particularmente considero até falta de respeito com aqueles que já lutaram e ainda lutam nesse país por uma sociedade e um Estado mais digno. Um estudante da USP se considerar preso político - aqueles que deram a cara para bater porque possuíam um ideal e lutaram de verdade por ele, que foram presos, torturados, perseguidos ou exilados - dentro de tais comparações chega a ser ridículo. 
Falta o entendimento de muitos que a USP não é propriedade dos estudantes e, embora todos tenham o direito de se expressar, não cabe SOMENTE a eles a decisão da permanência da polícia, mesmo porque normalmente esquecemos que esta universidade é um espaço público. Logo, é patrimônio de todos, pois é a sociedade paga para a USP existir. É como qualquer outro lugar regido pela Constituição e pelo Código Civil.
Agora, se o movimento que está ocorrendo é pela derrubada do reitor e pelo fim da repressão policial no campus, como afirmou o professor da Escola de Comunicação e Artes da USP (a ECA) Luiz Renato Martins, colocando o reitor como problema central, por que esperaram os estudantes serem detidos com maconha para iniciarem o movimento (foi depois disso que tudo começou)? Se o problema é o reitor e o conselho universitário que, segundo este professor, propõe uma espécie de militarização da universidade, isso é outra história, e mesmo assim não vai justificar a depredação do patrimônio, por exemplo. Não está clara a finalidade do movimento. Também não é a escolha de um reitor que vai fazer a diferença. O problema é estrural na USP, é preciso repensá-la e desestruturá-la. Esta sim seria uma causa justa do movimento e que todos os estudantes deveriam aderir-se a ela,  porque embora o restante dos estudantes sejam contrários às manifestações, podemos questionar qual é a porcentagem de alunos que caíram no conformismo, ideologicamente falando.
Gostaria de deixar claro que sou contra qualquer forma de violência, seja por parte da polícia, seja por parte dos estudantes. Sou contra qualquer atitude de autoritarismo e repressão, mas também sou contra atos de vandalismo. E acho válido as associações e assembléias de estudantes engajados, porque realmente esses estão dentro das discussões e não vão cair num discurso vazio ou, como dizem por aí, na rebeldia sem causa. Dentro do movimento há exceções, e são essas exceções que precisamos ouvir para debatermos os problemas mais profundamente, e não em tom panfletário.  A polícia também não pode ser a resposta. É necessário reorganizar a universidade como campo de participação e decisão coletiva.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

A (incansável) polêmica


Muito me admira que, após duas semanas, a história do Rafinha Bastos ainda esteja no auge da repercussão. Pior que isso, é saber o que as pessoas pensam do assunto e como se portam diante do fato fazendo comparações sem um mínimo de fundamento. Não vou nem dar a notícia da fala do apresentador do CQC, agora afastado, em relação à Wanessa Camargo, porque já é conhecimento de todos.
Acredito que o caso deve sim ser comparado a outros, mas não à comparação sem sentido que está rolando nas redes sociais com o Paulo Maluf. Veja bem: Rafinha Bastos é apenas mais uma pessoa que está nos indicando que estamos passando por uma mudança social sem controle, pois na condição de humorista, ele quis fazer a galera rir à custa do desrespeito pelo outro. Não acredito que há ganhas nisso; o que há são perdas. Perdas de valores sociais, perdas morais, o que me faz pensar o quanto o indivíduo perde de si mesmo, em relação à sua dignidade, (auto)estima e respeito.
Mas esta não é uma história de origem recente. O que presenciamos hoje está muito relacionado aos fatos históricos do povo brasileiro. Os longos anos de ditadura, de ausência de liberdade e de direitos, quando chegaram ao fim, foram substituídos por uma sociedade que se inebria e se vê encantada no equívoco de que a liberdade só existe se for desmedida, sem freios, sem regras, ou seja: sem respeito pela liberdade do outro.
E a propósito, já que as comparações pendem para o lado político, as pessoas confundem o direito de livre expressão com liberdade. Confundem liberdade com abuso, direito com prepotência, democracia com impunidade. Tenho notado que a dimensão da declaração de Rafinha Bastos gerou essa grande confusão. 
Cheguei a ler todos os tipos de comentários, desde o qual um sujeito diz que Wanessa Camargo estava se utilizando da injúria para se promover, como se ela precisasse disso, até o fato de ela ser péssima profissional e etc, como se a questão fosse esta. Claro que entre as milhões de opiniões, encontra-se os que acham que ela exagerou, apenas expressando a imagem que teve diante do fato. ou mesmo que ela agiu corretamente. Mas eu só fico pensando o que essas pessoas  - que acharam inadmissível o processo e a ação que a cantora e o marido estão movendo contra o humorista - fariam ou pensariam se o mesmo fosse dito em relação à mãe, à irmã, prima, tia, etc. Por isso é sempre muito mais fácil falar dos outros.
Volto a dizer: está faltando referência de valores sociais, o eixo do senso de justiça está se deslocando de uma forma que só é boa para o indivíduo quando lhe diz respeito, quando lhe convém, aniquilando o sentido da alteridade.
Além disso, as imagens que estão circulando com a frase "Brasil: país onde os humoristas são levados a sério, mas os políticos são levados na brincadeira" não me surpreende. Primeiro porque a política nunca foi levada a sério no país, tanto pelos políticos quanto pelas próprias pessoas que elegem tais candidatos. Criou-se a cultura do viver da política, e não para a política. Aliás, tenho curiosidade em saber em quais políticos essas pessoas votaram, as que acharam o fim dos tempos a ação judicial. O que essas pessoas fazem para combater a corrupção? Elas estão protestando, estão nos centros acadêmicos, em grupos ou nas redes sociais debatendo? Tenho minhas suspeitas. 
Com isso, só quero afirmar que não reconhecemos mais os próprios limites, então invadir o limite do outro está se tornando comum, virando rotina, e todos se acostumam a tudo. Até quando?

sábado, 1 de outubro de 2011

Aceitando o inexplicável

É exatamente isso que está acontecendo, em especial depois de ter pensado e repensado mil vezes o que aconteceu com aquele menino de 10 anos que atirou na professora e depois se suicidou, em São Caetano do Sul, na região do ABC. Posso estar relativamente atrasada no que concerne à notícia, que não é novidade para ninguém, mas quando os noticiários vão nos mostrando outras informações, tudo parece ficar mais claro, principalmente neste caso. O que ficou claro (e o que não se aceita e não se quer pensar) é o seguinte: não existe uma explicação racional e concreta que justifique a sucessão dos eventos - pegar a arma do pai, mentir para o mesmo afirmando não estar com o revólver, atirar na professora e, logo em seguida, atirar em si mesmo.
Não queria escrever isso no ato do acontecimento porque alguém poderia dizer que não sei nada a respeito do garoto. Pois bem. O que aconteceu de lá para cá? A vida do jovem David tornou-se um livro aberto, muito se comentou sobre suas amizades, família, notas e desempenho escolares, credos e atitudes. Conclusão: tudo parecia muito perfeito: filho de um guarda civil municipal, de família tradicionalmente evangélica e aluno exemplar. Pergunto: como explicar? Aliás, um indivíduo com esses hábitos e características pode estar imune de qualquer ação ou feito como este? Nesses dias que fomos bombardeados com os detalhes de sua vida, esperávamos encontrar ao menos um elemento que fosse a porta de entrada para estabelecer uma relação com o ocorrido. Não encontramos, mesmo com as supostas declarações de seus amigos da escola, cuja afirmação circulou na esfera da ação racional com relação a fins, ou seja, omo algo certo, que o garoto já havia tomado esta decisão e cometeria o delito.
Eis o choque. Nós fomos e somos educados com a mentalidade de que para tudo há uma razão de ser, sempre existe um por quê. E a sociedade ainda não aceita, ou melhor, não suporta a ideia de admitir que estamos desamparados frente à idealização de que tudo tem - e deve ter - uma explicação racional. Não suporta porque isso soa como algo desesperador. Mas a tragédia desse menino de 10 anos está aí para nos mostrar que o império do "tudo é explicável" está com os dias contados.
Agora, pior mesmo é que, nesses fatos, a "causalidade forçada" vira festa. Quantas vezes não ouvimos aquelas declarações que criam alusão ao acontecimento? No caso de David não foi diferente. Começou a ser dito que alguém teria notado uma mudança de comportamento, que o pai deveria ter advertido a escola sobre o desparecimento da arma, deixando a direção mais atenta. Recorro a Jorge Forbes: como é fácil ser profeta do passado! Difícil mesmo é nos certificarmos de que atravessamos um momento cujos crimes inusitados e insólitos estão se tornando uma tendência, e profetizar o passado não resolve o problema. 
Este é, naturalmente, um desafio que nos foi imposto. Precisamos abandonar o "Freud explica"; estamos carentes de novas formulações, já que esta é uma era marcada por acontecimentos nem sempre previsíveis. As teorias consolidadas no passado não servem para esses casos. E quando eles ocorrem, ficamos pasmados, o que demonstra o quanto não estamos aptos para lidar com os limites da condição humana.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

As lógicas culturais do capitalismo

Um par de botas - Vincent Van Gogh


Diamond dust shoes - Andy Warhol

Fazer uma análise de pares de sapatos pode soar estranho, mas não é quando pensamos nas tendências do modernismo e do pós-modernismo. É claro que esteticamente já é possível notar várias diferenças, mas gostaria de abordar de forma minuciosa algumas características, umas mais evidentes, outras nem tanto, sobretudo para aqueles que, assim como eu, não são especialistas no assunto. Cabe também avisar que tudo começou quando estava lendo um livro do Fredric Jameson que faz algumas reflexões acerca do pós-modernismo em que, segundo o autor, as diferenças são mais evidentes na arquitetura. Mas o modo como ele constrói sua análise não é pós-moderno, especialmente porque trabalha com as categorias de história e totalidade, esta última de Lukács, que afirma não ser possível a separação entre as esferas econômica, cultural, política, estética. Todas são pensadas dentro de todo um processo estrutural.
Um par de botas, do Van Gogh, é uma imagem que me permite afirmar que não se trata apenas de um par de sapatos que foi desenhado pelo artista num momento de lazer, e está longe de ser isso. Ela representa todo um universo pautado na miséria agrícola e na pobreza rural, a esfera humana onde se encontra o trabalho penoso, árduo e opressivo, reduzida à situação mais brutal, desumana, ameaçada, arcaica e marginalizada.
A explosão de cores é intencional em Van Gogh (aliás, percebemos isso em todas as suas obras) para entrar em contradição com o mundo sombrio apresentado. Elas simbolizam um gesto utópico do artista à medida que transforma o mundo opaco do camponês. A obra possui vivacidade e profundidade. Por isso, estou convicta de que considero legítima a ideia de materialidade renovada. Parece trazer toda uma história de vida, em que acabamos imaginando o contexto a que as botas se referem (trabalho, desgaste e as outras características que já foram mencionadas anteriormente).
Quando nos deparamos com a imagem pós-modernista de Andy Warhol, Diamond dust shoes, creio que o primeiro aspecto que devemos notar é o fato de que na obra não consta a assinatura do artista. Aliás, é importante dizer que as produções de Warhol não são pinturas; a técnica utilizada é a serigrafia. Segundo, as obras de Warhol são sempre modificadas, tanto que é comum encontrar diferentes versões referentes à mesma obra.
Embora o uso abundante de cores também esteja presente neste artista, elas não possuem uma finalidade tão específica quanto nas de Van Gogh. Na verdade, o destaque se faz necessário porque a publicidade é trabalhada em cima de algo que chame a atenção. Creio ser válido afirmar que no pós-modernismo, a arte se confunde com a publicidade.
Mas, voltando à imagem de Diamond dust shoes, é perceptível que trata-se de uma coleção de objetos (os sapatos) sem vida que não possuem um referencial histórico concreto, e para a teoria pós-moderna, a falta de profundidade,de dimensão, é uma constante. Além disso, podemos observar que o enfraquecimento da historicidade também reflete as tendências do pós-modernismo, bem como o brilho falso da mercadoria (basta lembrarmos das outras obras de Warhol, como as latas de sopa Campbell, a garrafa de Coca-Cola e os retratos de celebridades, cuja mais expressiva e conhecida de seus trabalhos é a Marilyn Monroe). Estas são, indubitavelmente, as maiores diferenças entre os retratos expostos e, consequentemente, de seus movimentos artísticos nos quais estão situados.
Gostaria de voltar em Jameson para finalizar com uma relação entre o pós-modernismo e o modo de produção capitalista. Primeiro, não se trata somente de de um estilo ou ideologia; o pós-modernismo diz respeito a uma nova história real do capitalismo e da cultura contemporânea, cujo cerne da questão está na relação entre mercado e cultura, ou cultura e economia capitalista. Mas isto não representa a ruptura de um momento do capitalismo; marca uma continuidade em que o capital se aprofunda para áreas que até então, na modernidade, se mantinham preservadas. No entanto, o pós-modernismo não acarretou o fim de outras tendências. Ele é uma dominante cultural dentro de um universo onde coexistem outras formas culturais da modernidade. Por isso, o princípio axial de Jameson, o eixo de sua reflexão, está no reconhecimento de que houve uma mudança de significado e na função social da cultura no pós-modernismo, que seria a relação das produções culturais mercantilizadas/mercantilização da cultura.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Felicidade: a vida como criação

Semana passada assisti a um vídeo com o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, organizado pela CPFL Cultura. Particularmente, eu o admiro muito e vejo coerência em duas ideias. Os trinta minutos de diálogo são bons, sem exceção alguma. No entanto, um dos momentos que mais me chamou a atenção está no final. As pessoas estão acostumadas a pensar na famosa "receita da felicidade", como se ela realmente existisse. Dessa vez, pouparei meus comentários, pois qualquer tentativa de equivalência à fala do Bauman será pura pretensão.

"Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz: segurança e liberdade. Você não consegue ser feliz, não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então você precisa dos dois. Entretanto, o problema é que ninguém ainda, na história do planeta, encontrou a fórmula de ouro, a mistura perfeita de segurança e liberdade. Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco da sua liberdade. Não há outra maneira. Cada vez que você tem mais liberdade, você entrega parte da sua segurança. Então, você ganha algo e perde algo.
[...] Então, minhas conclusões são duas. Em primeiro lugar, você nunca encontrará uma solução perfeita do dilema entre segurança e liberdade. Sempre haverá muito de uma e muito pouco de outra. E a segunda é que você nunca irá parar de procurar essa mina de ouro.
Eu não acredito que haja apenas uma forma de ser feliz. Há muitas formas de ser feliz. [...] Há dois fatores relativamente independentes que dão forma à vida humana. Um deles é o destino. O destino é o apelido para todas as coisas sobre as quais não temos nenhuma influência; é o que acontece conosco, mas não foi causado por nós. Isso é destino. E o outro é o caráter. O caráter é algo muito individual, você pode trabalhar em cima do seu caráter. Se quiser, você pode mudá-lo, melhorá-lo; boa parte dele está sob o seu controle. A divisão de trabalho entre o destino e o caráter é tal que o destino estabelece a gama de opções que são realistas para você. Sobre isso, você não tem nenhuma influência. [...] Porém, as escolhas entre essas opções são feitas pelo caráter. E como os tipo de carátr são muitos e bem diferentes, não é possível dar uma receita para a felicidade. Eu sei que hoje existem consultores ganhando muito dinheiro fingindo que possuem receitas para a felicidade. Não acreditem neles; eles estariam enganando você. Eu jamais ousaria dar este tipo de conselho.
Não estou me comparando a Sócrates, mas muitos filósofos contemporâneos consideram a vida de Sócrates, sua personalidade, que ele construiu, como a relativamente mais perfeita possível que se pode imaginar. Mas o que isso significa? Significa que o tipo de vida escolhido por Sócrates era considerado a solução perfeita para Sócrates? Significa que todos nós devemos imitar Sócrates e tentar ser iguais a ele? Não. Pelo contrário, porque Sócrates precisamente considerava que o segredo de sua felicidade estava no fato de ele prórpio, por sua própria vontade, ter criado a forma de vida que ele viveu.
As pessoas que imitam a forma de vida de outra pessoa, o modelo de felicidade de outra pessoa, não são como Sócrates. Pelo contrário, elas traem a receita dele. Elas tarem sua receita, precisamente porque sua receita... Bem, você pode traduzir isso em termos simples, dizendo que para cada ser humano há um mundo perfeito, feito especialmente para ele ou ela".

Esta reflexão sobre a felicidade pode ser encontrada no livro do Bauman que se chama A Arte da Vida. Para os que insistem em acreditar na receita da felicidade, só resta afirmar que a essência está justamente na (auto)criação; é o ato de criar que nos proporciona uma vida única e peculiar. A todo o momento nos vemos em situações em que são ditados valores, normas, formas de se agir, de se comportar. Tudo isso para vivermos dentro daquilo que chamamos de padrão, e justamente este é o caminho a que estamos sendo conduzidos em relação ao modo de viver quando nos deparamos com livros e gente oferecendo receitas para a felicidade. A padronização de um estilo de vida é o limite daquilo que há de mais vulgar.

sábado, 27 de agosto de 2011

Trabalho imaterial e capital II

No post anterior, eu me comprometi a dar uma continuidade no assunto que estava sendo tratado, o trabalho imaterial. Esta postagem é uma continuação, estendendo-se para a esfera do consumo.Terminei discorrendo sobre a transformação da pessoa em mercadoria (em poucas palavras, o Eu S/A: processo em que o indivíduo cria uma relação de exploração de si mesmo).
Frente a essas reflexões, podemos começar a pensar em que consiste o valor de qualquer coisa atualmente, uma vez que o tempo de trabalho não é mais a medida apropriada. Segundo Gorz, a proporção imaterial dos produtos se sobressai sobre a dimensão e realidade material dos mesmos. Ou seja, seu valor simbólico, estético e social possui vantagem em relação ao seu uso prático. Esta questão é bastante esclarecedora quando tentamos compreender, por exemplo, o capital que é (re)produzido nas grandes corporações. Penso que Gorz foi muito feliz ao afirmar que: "O capital de firmas como Nike, Coca Cola ou McDonald's consiste principalmente no poder do monopólio, simbolizado pelo nome de marca que elas tem no mercado, e na importância do rendimento que esse poder lhes assegura. A marca já e´, em si mesma, um capital na medida em que seu prestígio e sua celebridade conferem aos produtos que levam seu nome um valor simbólico comercial. Seu renome, de fato, não é devido somente às qualidades intrínsecas de seus produtos. Foi necessário construí-lo, ao preço de investimentos importantes em marketing e em campanhas publicitárias recorrentes. São estas que construíram a imagem da marca, dotando os produtos de uma identidade distinta e de qualidades alegadas, para as quais a firma reinvindica monopólio". 
Se o valor dessas mercadorias está, digamos, no respeito imposto pela marca no mercado, e nos fazendo crer o quanto é importante usufruirmos dos bens produzidos por ela, não há muitas dúvidas que o monopólio dessas empresas, portanto, também é um monopólio simbólico. Mas neste ponto nos deparamos com o problema central: o consumidor. É de extrema importância o monopólio e o valor simbólicos, pois eles é que asseguram a produção de consumidores. Digo produção porque é necessário, de fato, produzir desejos e vontades de estilos de vida, e os indivíduos devem adotá-los, abstraí-los, interiorizá-los. Deste modo, são produzidos consumidores que precisam daquilo que não desejam e, principalmente, desejam aquilo que não necessiatm.
Um crítico pioneiro deste pensamento é Edward Bernays, sobrinho de Freud, que elaborou uma linha de raciocínio muito interessante. Os desejos, por sua própria natureza, tendem a ser ilimitados. Para aumentá-los, portanto, seria necessário fazer com as pessoas não vissem mais suas compras e o ato de consumir como resposta às necessidades práticas e considerações racionais. É na esfera do inconsciente, dos desejos ocultos e indeclaráveis, das motivações irracionais, que deveria se recorrer. Enfim, seria preciso criar uma cultura do consumo.
Posso estar enganada, mas acho pertinente pensarmos no caráter totalitário que é atribuído ao capitalismo. Alguém (cujo nome não me recordo) já disse que o problema reside no poder que essas corporações possuem sobre nosso imaginário e intelecto. Trata-se de uma influência que forma gerações, que modifica a orientação política, que é mais forte do que o próprio poder de influência da Igreja, do Estado, da escola, da família. (No limite, arriscaria dizer que, conscientemente ou não, chega a ser fascismo, uma vontade de obediência a este poder). É bem verdade também que a manipulação da indústria publicitária compromete-se a bucar respostas de problemas individuais para problemas coletivos. Isso quer dizer o mercado se julga capaz de resolver estes últimos sem usurpar, sem apoderar-se da soberania e o interesse individual de cada um. Por isso falei em totalitarismo.

Problemas:
Diante do quadro que foi apresentado neste post e no anterior, preciso fazer algumas observações:
- Esta teoria do imaterial é, basicamente, uma reinterpretação completa frente ao modo de como Marx concebe o capitalismo. Se a valorização da mercadoria não depende mais da apropriação do tempo alheio, mas do conhecimento alheio, a própria teoria das classes poder ser questionada.
- Existe, então, uma experiência emancipatória em relação ao tempo de trabalho e que não pode ser apropriada pelo capital? Existe um saber em que o indivíduo expressa sua inconformidade e não aceitação de normas, não sendo capaz de ser apropriado?
- Muitos elementos da teoria do imaterial não são novidade e podem ser encontrados facilmente em outros críticos, como Bordieu.
- A teoria do imaterial possui, claramente, uma visão eurocentrista. Mas o problema principal, a meu ver, está nas contradições que estamos presenciando entre o trabalho imaterial e outros trabalhos ainda mensuráveis pelo tempo, especialmente em zonas periféricas e emergentes (um exemplo banal: pedreiros, cortadores de cana, etc.). Não creio que o trabalho imaterial esteja prevalecendo em sua totalidade, embora talvez seja uma tendência. O valor das mercadorias já sabemos onde se encontra. Porém, do ponto de vista qualitativo, onde está o valor da riqueza? Onde ela está sendo produzida?

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Trabalho imaterial e capital

Ultimamente, tenho tentado compreender um novo assunto que traz consigo muitas reflexões. Devido à minha recente iniciação, as reflexões acabam sendo excessivas e não é difícil haver o predomínio da dúvida. No entanto, o meu esforço tende a ser maior, e por isso quero compartilhar aqui alguns pensamentos acerca do trabalho imaterial.
O meu interesse partiu de um texto de Moishe Postone intitulado Repensando a crítica de Marx ao Capitalismo; outro de Maurizio Lazaratto e Antonio Negri chamado Trabalho Imaterial; e um terceiro de uma obra de André Gorz, O Imaterial - este último tendo chamado mais a minha atenção.
De modo geral, o trabalho imaterial pode ser concebido como algo que diz respeito não à mercadoria, ao produto em si, mas ao tipo de trabalho utilizado e presente em sua produção, que nesse caso está intimamente relacionado ao seu conteúdo informativo e cultural.
Para esclarecer um pouco mais, voltarei em Marx. Já é consenso que o valor atribuído a qualquer mercadoria tem sua base no tempo de trabalho dispendido na produção da mesma. Porém, nos Grundrisse, é revelada uma tendência a uma nova configuração do trabalho que deve surgir num momento significativo e específico do capitalismo (cujos estudiosos da atualidade apontam este momento sendo o fim dos anos 60 e o começo dos 70). Marx alega que o modo de produção capitalista tende para um momento em que o tempo de trabalho humano deixará de ser o elemento fundamental na produção da riqueza, isto é, o valor de qualquer coisa não deverá mais ser medido através do tempo e quantia de trabalho empregados, mas sim de outros elementos.¹ E é aí que o trabalho imaterial se faz presente.
Um dos pilares de sustentação desta nova configuração do trabalho reside na afirmação de que, na sociedade em que vivemos, uma das principais e mais notórias forças produtivas é o conhecimento. Assim, torna-se válido repensar a legitimidade das categorias econômicas clássicas, como trabalho, valor e capital. Estou dizendo isso porque se concordarmos com esses autores, podemos afirmar que estamos atravessando um período em que modos de produção coexistem. Gorz, por exemplo, afirma ser um capitalismo pós-moderno centrado na valorização de um capital dito imaterial, pois o trabalho em sua forma imediata, mensurável e quantificável, é substituído pelo conhecimento, agora como força produtiva essencial. E se isso realmente for verdade, ou seja, se o conhecimento tiver chegado neste nível de poder, também é válido afirmar que o capital está centrado, portanto, na inteligência, na imaginação e no saber que, juntos, constituem o capital imaterial. Mais que isso: o capital agora é um capital humano. A riqueza é gerada a partir da subjetividade e não de atividades objetivas.
Deste modo, o perfil do trabalhador também é modificado. Novas qualificações são prezadas, como flexibilidade, desenvolvimento de tarefas múltiplas, criatividade, iniciativa, colaboração, cooperação e capacidade de fazer escolhas. Não se trata de qualificações subjetivas e que já possuem impacto na contratação de trabalhadores? Podemos mencionar como exemplo a seleção por dinâmica de grupos, cada vez mais frequentes. Aparentemente, parece-me uma forma muito sutil de manifestação de um novo tipo de parâmetro pelo qual se avalia a capacidade do trabalhador e do próprio trabalho.
Isto denuncia a seriedade do problema. O ser humano produz a si mesmo; esta é uma dimensão necessária de todo e qualquer trabalho imaterial. Este, por sua vez, recorre às mesmas competências, habilidades e disposições que o indivíduo possui em suas atividades livres, fora do trabalho, não sendo mais possível identificar os tempos da vida. Eles se misturam; a esfera do ócio, do lazer, da (im)produtividade, é confundida com a esfera do trabalho. Inclusive, os filósofos Muriel Combes e Bernard Aspe alegam que a economia do imaterial seria uma nova forma de servidão voluntária. Com receio de investir sua própria dignidade numa atividade indigna, o trabalhador do imaterial que se dá conta de tal gravidade está propenso a provar que vale mais do que realiza profissionalmente, e empreenderá sua dignidade nas atividades fora do trabalho, num exercício gratuito, dentro de suas capacidades: "jornalistas que escrevem livros, gráficos do meio publicitário que criam obras de arte, programadores de computadores que demonstram suas habilidades como hackers e como desenvolvedores de programas livres, etc., são muitas as maneiras de salvar sua honra e 'sua alma'".
Mas o processo não termina aí. Como os tempos da vida se confundem e a fronteira que os separa não existe mais, a própria vida se torna o capital mais precioso, literalmente um show business. Não porque as habilidades são as mesmas em qualquer esfera, mas, como pressupõe André Gorz, "porque o tempo da vida se reduz  inteiramente sob a influência do cálculo econômico e do valor".
Se este raciocínio é minimamente coerente, não é necessário muito esforço para compreender a tese de que tudo é mercadoria (aliás, uma tese que já tenho defendido há um certo tempo, desde quando comecei a me aprofundar no assunto para o meu trabalho de conclusão de curso, e que agora tenho encontrado em outros críticos que trabalham com outras temáticas). A venda do si se desenrola e se desenvolve em todas as circunstâncias da vida. Como a vida se tornou capital, todas as atividades realizadas possuem sua dimensão mercadológica. Pierre Lévy é outro adepto desta tese, e sustenta seu pensamento ao afirmar que "sexualidade, casamento, procriação, saúde, beleza, identidade, conhecimentos, relações, ideias..., nós estaremos constantemente ocupados em fazer toda espécie de negócios... A pessoa torna-se uma empresa".  Os indivíduos, então, empregam seu tempo a se venderem uns aos outros.
Pretendo estender esta reflexão para a esfera do consumo, que particularmente considero como essencial.

Nota:
1 - Uma consideração é importante. Com esta afirmação nos Grundrisse, será que Marx não estaria questionando seu próprio núcleo de pensamento contido em sua obra célebre, O Capital, referente à teoria do valor-trabalho?

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Uma nova abordagem sobre modernidade

Aqueles que me conhecem sabem o quanto eu sou apaixonada pelas discussões referentes à modernidade. Já li diversos autores que transcorreram sobre o tema, cada um com uma visão muito peculiar, mas sem deixar de dialogar com os outros. 
A novidade é que eu li recentemente um livro do José de Souza Martins, A Sociabilidade do Homem Simples, e logo na primeira parte da obra há um capítulo intitulado "As hesitações do moderno e as contradições da modernidade no Brasil". Creio que sua abordagem está intimamente ligada com outras que considero como as mais coerentes sobre o pensamento moderno, com a diferença que esta não deixa de lado o quanto o próprio conceito da modernidade e sua vivência (ou não) estão presentes na vida cotidiana. Para se ter uma ideia, segue um trecho:

"A modernidade anuncia o possível, embora não o realize. A modernidade é uma espécie de mistificação desmistificadora das imensas possibilidades de transformação humana e social que o capitalismo foi capaz de criar, mas não é capaz de realizr. Mistifica desmistificando porque põe diante da consciência de cada ser humano, e na vida cotidiana de cada um, todo o imenso catálogo de concepções e alternativas de vida que estão disponíveis no mercado globalizado. Basta ter os recursos para consegui-lo. Mistifica desmistificando porque anuncia que são coisas possíveis de um mundo possível, mas não contém nenhum item no seu mercado imenso que diga como conseguir tais recursos, que faça o milagre simples de transformar o possível em real".(MARTINS, 2011, p. 19)

É inviável falar sobre a modernidade e não abordar o modo de produção capitalista, o progresso e a emancipação do indivíduo. A minha tese é a de que a sociedade moderna que sempre visou o progesso elegeu o indivíduo como responsável pelo seu destino, mas o próprio sistema capitalista, conforma já foi dito por Berman, destrói as possibilidades humanas por ele criadas. "Estimula, ou melhor, força o autodesenvolvimento de todos, mas as pessoas só podem desenvovler-se de maneira restrita e distorcida" (BERMAN, 1986, p. 94), pois não compartilham uma realidade e oportunidade comuns. Aliás, é certo que são desiguais.
Seria muito válido fazer uma ponte com a esfera do consumo, em especial porque sabemos que ele tem um papel importante na formação do indivíduo e por acreditar, assim como Edgar Morin, na "industrialização" do espírito com todo o avanço técnico-industrial que já obtivemos ao longo da História. No entanto, prefiro centrar este post na modernidade e não em suas ramificações.
A partir do que já foi exposto, é coerente afirmar que foi na modernidade que o homem demonstrou o que suas atividades e trabalho são capazes de realizar, mas também é notório que esse mesmo período trouxe diversas ilusões, promessas e utopias de um mundo mais igual, quando na verdade não conseguiu gerar progresso real e igualitário para compensar a miséria que trouxe consigo.
Por isso (mas não exclusivamente por isso), voltando em José de Souza Martins, a modernidade é o reino do cinismo: ela mesma denuncia suas desigualdades e desencontros. 
Se levarmos em conta esse pressuposto, existe um certo perigo ao discutirmos o nosso presente como "pós-modernidade". A dimensão conceitual da modernidade não é a coisa mais simples de se compreender, em especial porque nem sempre há um consenso geral para todos que se debruçaram e ainda persistem na discussão sobre o tema. Então, ao pensar que estamos vivendo um período pós-moderno, não somos capazes de compreender o tempo e momento preciso que vivemos sem compreender o moderno. Afinal, não se compreende um "pós-conceito", sem fazer a ligação do passado com o presente. É impossível sermos pós-modernos sem termos sido modernos, não conseguimos nos encontrar e reconhecer nesse processo, e esta é uma outra crítica de José de Souza Martins, em especial referente à (in)modernidade latino-americana: "Aqui os tempos históricos estão mesclados e confundidos no dia a dia, como estão confundidos e invertidos os estilos cognitivos dos diferentes mundos que demarcam a nossa vida social. É como se já fôssemos pós-modernos antes mesmo de chegarmos à modernidade, há muito misturando numa colagem desarticulada tempos históricos e realidades sociais" (MARTINS, 2011, p. 41).