domingo, 29 de agosto de 2010

Destino ímpar

Em 10 de agosto fez 15 anos que um grande sociólogo que era brasileiro nos deixou. Florestan Fernandes foi um homem excepcional. Talvez eu tenha pouquíssima credibilidade para falar de alguém como ele, mas sem sombra de dúvidas foi o maior sociólogo brasileiro.
Foi aquele que desconheceu o pai, era filho de uma simples lavadeira analfabeta e morou em cortiços.
Foi aquele que trabalhou desde a infância, que aos seis anos já dormia no próprio estabelecimento de trabalho. Depois, passou a ser engraxate e posteriormente, garçom do Centro Histórico de São Paulo.
Atrás do balcão, enquanto não servia professores, doutores ou jornalistas, Florestan se debruçava em obras literárias, até que um dia despertou a curiosidade de um homem que passou a incentivá-lo aos estudos. A USP estava em seu primórdio quando o sociólogo começou a estudar lá. Então, não parou mais.
Apesar de todas as dificuldades (ele aprendeu a ciência sociológica em qualquer idioma, menos em português porque os grandes mestres vieram do exterior), Florestan nunca deixou de lado o esforço e a persistência.
Foi ele que tornou a Sociologia uma profissão como as outras existentes. E estando nessa condição, sua grande preocupação era com o método científico; a Sociologia não poderia ser "qualquer coisa" para ele.
Embora levasse muito em consideração o rigor metodológico, a coisa mais importante para Florestan era, sobretudo, o receio de se afastar de suas origens. Era acima de tudo um homem humilde e que sabia muito bem qual era o seu lugar no mundo.
Sua trajetória, para isso não virar uma espécie de resumo de biografia, está escrita em todos os meios de comunicação. Sua carreira política, enquanto constituinte, foi de fundamental importância para a constituição de uma democracia no Brasil depois de séculos de exploração colonial e, mais recentamente, ditaduras militares.
O Brasil ainda não conheceu alguém como Florestan Fernandes que, diferente de qualquer outra pessoa, teve um destino ímpar. Ele é uma das pessoas mais admiráveis que tenho conhecimento em um pouco mais de duas décadas de vida. E, sinceramente, não acredito que conhecerei com facilidade alguém que chegue em seu nível de esclarecimento e superação intelectual, de vida e de história.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Do ócio

Todo mundo está cansado de ouvir - e dizer! - que não tem tempo para nada, ou que não se pode perder tempo. Consequentemente, a imagem do ócio não é bem vinda em tempos de correria e desordem. Ficar sem fazer nada quando se tem muitos compromissos é um descaso.
Pois bem. Acontece que arrumei uma justificativa para conservarmos um pouco o ócio. É exatamente este tempo vazio que produz a consciência de usufruir melhor o restante do tempo que temos. Tirar um dia ou algumas horas para não fazer nada nem em sonho; o ócio é impensável porque estamos sempre com pressa, fazemos esquemas práticos e milaborantes, às vezes nos multiplicamos para fazer tudo o que precisamos e deixamos de pensar como poderíamos nos organizar minimamente melhor, sobretudo viver mais tranquilamente.
Sou a favor do ócio, não só por isso, mas realmente para contemplar um pouco a vida, porque já que o tempo nem sempre está a nosso favor, não estou disposta a vê-lo passar num ritmo estonteante e, principalmente, degenerativo.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Em cada esquina herdarás só o cinismo

Domingo à noite. A missa na igreja Matriz acaba e todos vão passear na praça central, ouvir a banda tocar no coreto, comer pipoca e comprar algodão doce. Sento no banco de sempre, com a propaganda antiga Chapeos, e o casal com as duas filhas que receberam a benção passeiam contentes. Reconheço o homem com camisa social. É aquele que agora abraça a mulher e dá a mão para uma das filhas e durante a semana sai com minha melhor amiga e lhe oferece regalias típicas de uma vida de rainha.

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É sábado numa manhã ensolarada de setembro e os feirantes estão a todo vapor montando suas barracas. O povo começa a chegar freneticamente. No meio do "zé povinho", surge o nobre - e rico - candidato a vereador da cidade Laerte Gomes, que se mistura à multidão com um sorriso falso e amarelado, cumprimentando "aquela gente". A barraca do pastel do japonês está lotada e, ao se aproximar dela, eis que um desconhecido diz em alto e bom tom, cheio de ironia:
- Pára, Laerte. Todo mundo sabe que o senhor não vem à feira, muito menos para comer pastel. Está aqui para pedir votos a esta gente humilde.
Gomes come seu pastel de carne sem saber o que responder e onde esconder o rosto corado de vergonha.

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Por isso que, como diz uma amiga, a humanidade é movida através de dois poderes: sexo e dinheiro.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ilusão do resgate da humanidade

Ontem, numa breve conversa com o Deivid, discutimos sobre a proibição de touradas na região espanhola Catalunha. Para mim, está claro que os animais - não só em touradas, em rodeios, mas em infinitos lugares, incluindo corridas de cavalos, um esporte totalmente elitizado que traz sofrimento ao animal - ainda são tratados de forma medieval.
A questão é uma só: se não superamos nem a questão de tratamento aos animais, estamos bem longe de superar a questão da indignidade humana.