Para quem não perdeu tempo lendo uma reportagem da revista Veja esta semana, faz-se necessário dizer que esta produção textual é uma réplica ao artigo de Marcelo Bortoloti sobre a obrigatoriedade do ensino das disciplinas de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio nas escolas de todo o país.
Minha análise começa no subtítulo da reportagem, que diz: “Agora obrigatórias no ensino médio brasileiro, as aulas de sociologia e filosofia abusam de conceitos rasos e tom panfletário. Matemática que é bom...”. Este subtítulo incompleto, digamos, faz sentido. Para uma pessoa esclarecida, não é necessário terminar; a posição do autor é clara. Durante a reportagem, a idéia que se tem da disciplina de Sociologia é a de que ela não faz sentido para o aluno. A minha pergunta é: O aluno vê sentido, aos 15 ou 16 anos, em aprender logaritmo? Para ele, isso também não faz o menor sentido, sem desmerecer a Matemática, pois ela tem importância fundamental para as pessoas, bem como as demais ciências. Normalmente, nada costuma fazer muito sentido para o aluno, seja logaritmo, seja cálculo estequiométrico, sejam verbos irregulares, seja a estrutura de um vírus, seja refletir sobre a sociedade. Isso nos faz pensar que talvez o problema da educação seja estrutural, e não individual, das disciplinas, mas do processo educativo como um todo.
No início do texto, o autor se posiciona: “A leitura atenta desse material traz à luz um festival de conceitos simplificados e de velhos chavões de esquerda que, os especialistas concordam, estão longe de se prestar ao essencial numa sala de aula: expandir o horizonte dos alunos”. Para começar, quem são esses especialistas? À que área pertencem? Além do mais, é evidente que a educação tem como princípio expandir o horizonte dos alunos, mas o objetivo primordial da Sociologia é a reflexão, pois nós – sociólogos “de verdade” – acreditamos que a Sociologia não propõe a solução de tudo (ou seja, ela não aponta onde está esse horizonte), mas sim o aperfeiçoamento das formas de se pensar e ver o mundo; propõe ao aluno que saiba fundamentar suas opiniões para que não se enquadrem ao senso comum.
Quanto às metas do currículo de cada estado, é cabível dizer que o material, de fato, não é dos melhores e pode até conter conceitos rasos e conteúdos supérfluos, mas se é verdade que a Sociologia enquanto ciência deve apresentar reflexões, como é que o Estado vai produzir um material que proporcione a reflexão de alguns problemas que ele mesmo gera? Quando o autor diz que a proposta explícita das aulas de Goiás (incrustar no aluno a idéia de que a constante diminuição de cargos em empresas do mundo capitalista é um fator estrutural do sistema econômico) “desconsidera o fato de que esse mesmo regime resultou em mais e melhores empregos no curso da história”, esquece-se de que no modo de produção capitalista, pela primeira vez na história, uma parcela do tempo do trabalhador passou a ser expropriada dele sem que ele soubesse (isso é a mais-valia), uma vez que em todos os modos de produção anteriores o homem tinha uma clara noção de sua posição e de sua exploração.
O autor também toca num ponto muito importante. Quando diz que os cursos de Filosofia e Sociologia se ancoram num ideário marxista e que, na verdade, estão cada vez mais distantes do rigor da complexidade do pensamento de Marx, precisamos analisar com cuidado. Quer dizer, o ideal é não generalizar o posicionamento desses cursos. Todos sabem que mesmo dentro dessas ciências, inclusive da História, encontramos indivíduos com tendências conservadoras. O importante na Sociologia, volto a dizer, é que esta reflexão dê fundamentos às pessoas, ou seja, que elas saibam defender seus referenciais. Quanto ao velho Marx, César Benjamin fez uma excelente colocação, ao dizer que “nunca foi tão necessário retornar a Marx. Um dos elementos de nossa crise teórica é o fato de que Marx continua sendo muito citado, mas é cada vez menos lido, tanto pelos que o atacam quanto pelos que pensam segui-lo”. A Sociologia, por ser muito complexa, demanda tempo para as leituras originais, para a compreensão profunda das teorias, tanto que se torna impossível ler todos os clássicos num período de graduação, mas ter consciência de tal fato já faz com que o cientista social tenha uma postura clara quanto às discussões que pode oferecer, seja ela de Marx, seja de outros pensadores.
A Sociologia, como é de se saber, não é exclusividade brasileira. Fundada na Europa e trazida para o Brasil (inclusive com o grande mestre que faleceu ano passado Claude Lévi-Strauss) primeiramente na USP, era de se esperar que algumas dificuldades fossem impedir seu desenvolvimento. Aqui a Sociologia não é reconhecida, mas nós, brasileiros, que temos o costume de acreditar que aquilo que vem de fora é melhor, deveríamos saber que no velho continente esta ciência é extremamente relevante para a produção do conhecimento.
No final do artigo, o autor salienta a falta de profissionais especializados para atuarem em sala de aula nesta disciplina. O que ele não deixa claro, porém, é que a educação – sobretudo a pública – é, indubitavelmente, um problema político, baseado em decisões que, como costumamos dizer, “vêm de cima”. Ele também não menciona que o país está absurdamente escasso de profissionais de todas as áreas. Faltam bons profissionais para todas as disciplinas. Não é à toa que muitos concluem o Ensino Médio com deficiências em leitura e escrita, que não possuem noções básicas de matemática aplicada no cotidiano e assim por diante. E devemos saber que este problema não é somente do aluno ou do educador. É algo intrínseco na estrutura do processo educativo, dominado por uma ideologia específica.
Falando em ideologia, não nos esqueçamos que o título do artigo é “Ideologia na cartilha”. A pretensão não é aprofundar a discussão sobre ideologia, mas Marx não estava enganado ao dizer que as idéias dominantes de uma sociedade são as idéias da classe dominante. Prova disso é que o próprio ensino de Sociologia não é conveniente para a classe dominante (aquela que vive do capital e não do trabalho), uma vez não é bom que as pessoas comecem a pensar desde as questões mais banais da sociedade até os problemas mais complexos estruturais para tomarem consciência daquilo que é necessário mudar.
O autor termina seu artigo da seguinte forma: “Em outros países da América Latina, esse tipo de iniciativa também costuma resvalar em aulas contaminadas pela ideologia de esquerda, preponderante nas escolas. Não será desse jeito que o Brasil dará o necessário passo rumo à excelência”. Para esta citação, Bortoloti deveria, no mínimo, apontar outro caminho, já que este é inútil. A Sociologia no Brasil também serve para reconhecermos que tanta desigualdade (nosso país, todos sabem, está entre os piores no aspecto de igualdade) não é questão de meritocracia, que o esforço não basta para vencer na vida quando já se está inserido em condições materiais que não fornecem oportunidades iguais a todos. Se não percebemos que a essência é ideológica num país em que a renda dos 10% mais ricos corresponde a 36 vezes à renda dos 40% mais pobres, só nos resta concordar com o alemão Max Weber, dono de uma coerência sem tamanho ao declarar que “neutro é quem já se decidiu pelo mais forte”.